Semana passada tive uma deliciosa conversa com a filosofa Rebecca Goldstein. O livro mais recente dela (36 Argumentos Para a Existência de Deus, Companhia das Letras, tradução de George Schlesinger, 536 páginas, 59 reais) foi publicado há pouco tempo no Brasil. Não é a primeira vez que abordamos o assunto na editoria de ciência do site de VEJA. No inicio do ano conversei com Sam Harris sobre o livro Moral Landscape, em que o autor defende uma tal de “ciência da moralidade”.
Dessa vez, em vez do energético e polarizado Sam Harris, encontrei uma ateia de voz doce e discurso amigável. Para colocar à prova seu discurso conciliador, fiz provocações e perguntas incômodas durante a entrevista. Rebecca, contudo, consegue como poucos falar de um assunto tão polemico quanto Deus, religião e suas implicações, sem trazer à tona a animosidade da coisa. Uma pena que não pude publicar a Ãntegra da entrevista. Poucas pessoas alem dos próprios jornalistas se dão conta da quantidade de material que não chega a ser publicado em uma entrevista. O que “vai pro ar” é uma espécie de melhores momentos. Das 30 perguntas que fiz, 10 entraram na matéria.
A discussão entre ateus e teÃstas é mais velha do que andar para frente, eu sei. Mas foram duas as coisas que mais me chamaram atenção no discurso dela. A primeira, o puxão de orelha que ela dá nos ateus. É muito, muito comum algumas pessoas que não acreditam no “Deus abraâmico“, e portanto, ateias, se julgarem mais espertas que aqueles que levam uma vida religiosa. (Essa é uma discussão muito delicada. A definição de palavras é muito delicada. Parto do pressuposto de que ser ateu é não acreditar que QUALQUER deus exista. Para mim, Rebecca não é ateia como afirma, uma vez que ela admite concordar com a definição de Deus de Spinoza… Enfim… detalhes…)
Voltando ao pedantismo de alguns ateus. Ser religioso, diz Rebecca, não é o mesmo que ser idiota. Experimentar a vida de um jeito religioso, continua, não pode ser parâmetro para julgar a intelectualidade de alguém. As experiências transcendentais existem e a linguagem secular ainda tem pouco vocabulário para descrevê-las. Já o idioma religioso está repleto de verbetes cuidadosamente trabalhados há milênios para traduzir essas experiências. Parece um argumento razoável e o puxão de orelha também vale para religiosos radicais que consideram os ateus imorais ou incapazes de passar por experiências transcendentais.
O segundo ponto que me chamou atenção é sobre a área de interseção entre a moralidade de religiosos e ateus. É meio óbvio, gente, mas é verdade. Praticamente a única coisa que diferencia o ateu/religioso comum, ou seja, aqueles que não são radicais, é a descrença/crença em Deus. Os dois indivÃduos aparentemente antagônicos trabalham questões morais de maneira muito parecida, na maioria das vezes. Claro, por motivações diferentes.
Para ilustrar o argumento, Rebecca contou um pequeno causo que ocorreu durante sua turnê de lançamento do livro e que não entrou na entrevista publicada. Lá estava a filósofa se sentindo importante em Philadelphia assinando exemplares e trocando experiências com leitores em uma tarde de autógrafos. De repente… mentira, ela não deu detalhes de como foi abordada. Fato é que uma senhora muito bem apessoada chegou até ela e disse INDIGNADA: “O quêêê? Quer dizer que você tem coragem de admitir que é ateia na frente de todo mundo? Por que você faria uma coisa tããão horrÃvel assim?”. Rebecca Goldstein era terrorista aos olhos daquela contrariada senhorinha.
Com um bom humor e docilidade inabaláveis, Rebecca conta que passou os 15 minutos seguintes conversando com a senhora sobre aquilo que ela, Rebecca, acreditava ser o certo moralmente: ajudar o próximo, promover a paz e a tolerância, o respeito individual, a caridade com os necessitados, e assim por diante. Ao fim da conversa, as duas, despidas de suas vestimentas de ateia e religiosa, chegaram à conclusão de que acreditavam praticamente nas mesmas coisas quando o assunto era o certo e o errado. A doninha ao fim da conversa não virou ateia… mas concedeu: “olha, não concordo com sua visão de Deus, mas estou vendo que a senhorita é uma pessoa de bem. Vamos ver o que esse livro fala”.
O mais cético dos céticos pode acreditar que a Rebecca é uma grande marqueteira. Talvez ela seja. Porém, quem quer ter um diálogo honesto sobre esse assunto tão polêmico, sabe que as coisas vão além disso. A ideia de que ateus e religiosos concordam mais do que imaginam sobre o mundo é muito poderosa. É tão óbvio que chega a doer. Talvez alguém tenha dito isso antes da Rebecca, mas é muito legal ver uma filósofa ateia respeitada subir a bandeira branca. Mais deveriam fazer a mesma coisa. Talvez seja um ingrediente importante que esteja faltando para que as pessoas tenham diálogos saudáveis sobre o que pensam e possam abrir novas portas para as relações humanas.
Se a linha de chegada é a mesma para todo mundo, importa se vamos chegar até ela passando pelo melhor dos caminhos religioso ou secular? Algo me diz que não.
E você, após ler a entrevista, o que acha?
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